Carl Sagan
A compreensão humana não é um exame desinteressado, mas recebe
infusões da vontade e dos afetos; disso se originam ciências que podem ser
chamadas “ciências conforme a nossa vontade”. Pois um homem acredita mais
facilmente no que gostaria que fosse verdade. Assim, ele rejeita coisas
difíceis pela impaciência de pesquisar; coisas sensatas, porque diminuem a
esperança; as coisas mais profundas da natureza, por superstição; a luz da
experiência, por arrogância e orgulho; coisas que não são comumente aceitas,
por deferência à opinião do vulgo. Em suma, inúmeras são as maneiras, e às
vezes imperceptíveis, pelas quais os afetos colorem e contaminam o
entendimento.
Francis Bacon, Novum organon (1620)
Meus pais morreram há anos. Eu era muito ligado a eles. Ainda
sinto uma saudade terrível. Sei que sempre sentirei. Desejo acreditar que sua
essência, suas personalidades, o que eu tanto amava neles, ainda existe — real
e verdadeiramente — em algum lugar. Não pediria muito, apenas cinco ou dez
minutos por ano, para lhes contar sobre os netos, pô-las ao corrente das
últimas novidades, lembrar-lhes que eu os amo. Uma parte minha — por mais
infantil que pareça — se pergunta como é que estarão. “Está tudo bem?”, desejo
perguntar. As últimas palavras que me vi dizendo a meu pai, na hora de sua
morte, foram: “Tome cuidado”.
Às vezes sonho que estou falando com meus pais, e de repente —
ainda imerso na elaboração do sonho — sou tomado pela consciência esmagadora de
que eles não morreram de verdade, de que tudo não passou de um erro horrível.
Ora, ali estão eles, vivos e bem de saúde, meu pai fazendo piadas inteligentes,
minha mãe muito séria me aconselhando a usar uma manta porque está frio. Quando
acordo, passo de novo por um processo abreviado de luto. Evidentemente, existe
algo dentro de mim que está pronto a acreditar na vida após a morte. E que não
está nem um pouco interessado em saber se há alguma evidência séria que
confirme tal coisa.
Por isso, não rio da mulher que visita o túmulo do marido e
conversa com ele de vez em quando, talvez no aniversário de sua morte. Não é
difícil de compreender. E se tenho dificuldades com o status ontológico daquele
com que ela está falando, não faz mal. Não é isso que importa. O que importa é
que os seres humanos são humanos. Mais de um terço dos adultos norte-americanos
acreditam que em algum nível estabeleceram contato com os mortos. O número
parece ter dado um pulo de 15% entre 1977 e 1988. Um quarto dos
norte-americanos acredita em reencarnação.
Mas isso não significa que estou disposto a aceitar as
pretensões de um “médium”, que afirma canalizar os espíritos dos seres amados
que partiram, quando tenho consciência de que a prática está cheia de fraudes.
Sei o quanto desejo acreditar que meus pais só abandonaram os cascos de seus
corpos, como insetos ou cobras na muda, e partiram para outro lugar. Compreendo
que esses sentimentos poderiam me tornar uma presa fácil até de um trapaceiro
pouco inteligente, de pessoas normais que desconhecem suas mentes
inconscientes, ou dos que sofrem de uma desordem psiquiátrica dissociativa.
Relutantemente, ponho em ação algumas reservas de ceticismo.
Como é, pergunto a mim mesmo, que os canalizadores nunca nos dão
informações verificáveis que nos são inacessíveis por outros meios? Por que
Alexandre, o Grande, nunca nos informa sobre a localização exata de sua tumba,
Fermat sobre o seu último teorema, James Wilkes Booth sobre a conspiração do
assassinato de Lincoln, Hermann Goering sobre o incêndio do Reichstag? Por que
Sófocles, Demócrito e Aristarco não ditam as suas obras perdidas? Não querem
que as gerações futuras conheçam as suas obras-primas?
Se fosse anunciada alguma evidência real de vida após a morte,
desejaria muito examiná-la; mas teria de ser uma evidência real científica, e
não simples anedota. Em casos como A Face em Marte e os raptos por alienígenas,
eu diria que é melhor a verdade dura do que a fantasia consoladora. E, no
cômputo final, revela-se frequentemente que os fatos são mais consoladores que
a fantasia.
A premissa fundamental da “canalização”, do espiritismo e de
outras formas de necromancia é que não morremos quando experimentamos a morte.
Não exatamente. Continua a existir alguma parte de nós que pensa, sente e tem
memória. Seja o que for — alma ou espírito, nem matéria nem energia, mas alguma
outra coisa —, essa parte pode entrar novamente em corpos humanos ou de outros
seres, e assim a morte perde grande parte da sua ferroada. E ainda mais: se as
afirmações do espírita ou canalizador são verdadeiras, temos uma oportunidade
de entrar em contato com os seres amados que morreram.
J. Z. Knight, do estado de Washington, afirma estar em contato
com um ser de 35 mil anos chamado Ramtha. Ele fala inglês muito bem, usando a
língua, os lábios e as cordas vocais de Knight, com um sotaque que me parece
ser hindu. Como a maioria das pessoas sabe como falar, e muitas — de crianças a
atores profissionais — têm um repertório de vozes a seu dispor, a hipótese mais
simples sugere que é a própria sra. Knight que faz Ramtha falar, e que ela não
tem contato com entidades desencarnadas da época plistocena glacial. Se há
provas em contrário, gostaria muito de conhecer. Seria consideravelmente mais
impressionante se Ramtha pudesse falar por si mesmo, sem a ajuda da boca da
sra. Knight. Isso não sendo possível, como podemos testar a afirmação? (A atriz
Shirley MacLaine afirma que Ramtha foi seu irmão em Atlântida, mas isso já é
outra história.)
Vamos supor que Ramtha pudesse ser interrogado. Poderíamos
verificar se ele é quem afirma ser? Como é que ele sabe que viveu há 35 mil
anos, mesmo aproximadamente? Que calendário emprega? Quem está tomando nota dos
milênios intermediários? Trinta e cinco mil mais ou menos o quê? Como é que
eram as coisas há 35 mil anos? Ou Ramtha tem realmente essa idade, e nesse caso
vamos descobrir alguma coisa sobre esse período, ou é uma fraude e ele (ou
melhor, ela) vai se trair.
Onde é que Ramtha vivia? (Sei que fala inglês com sotaque hindu,
mas onde é que falavam assim há 35 mil anos?) Como era o clima? O que Ramtha
comia? (Os arqueólogos têm alguma noção do que as pessoas comiam nessa época.)
Quais eram as línguas autóctones, e qual era a estrutura social? Com quem mais
Ramtha vivia — com a mulher, mulheres, filhos, netos? Qual era o ciclo da vida,
a taxa de mortalidade infantil, a expectativa de vida? Eles tinham controle populacional?
Que roupas vestiam? Como elas eram fabricadas? Quais os predadores mais
perigosos? Os instrumentos e as estratégias da caça e da pesca? Armas? Sexismo
endêmico? Xenofobia e etnocentrismo? E, se Ramtha descendia da “elevada
civilização” de Atlântida, onde estão os detalhes linguísticos, tecnológicos,
históricos e de outra natureza? Como era a sua escrita? Respondam. Em lugar
disso, a única coisa que recebemos são homilias banais.
Para dar outro exemplo, eis um conjunto de informações que não
foram canalizadas de um morto antigo, mas de entidades não humanas
desconhecidas que fazem círculos nas plantações, assim como foi registrado pelo
jornalista Jim Schnabel:
“Estamos muito ansiosos por essa nação pecadora estar espalhando
mentiras sobre nós. Não viemos em máquinas, não pousamos na Terra em máquinas
[...]. Viemos como o vento. Somos a Força Vital. A Força Vital do solo [...].
Viemos até aqui [...]. Estamos apenas a um sopro de distância [...] a um sopro
de distância [...] não estamos a milhões de milhas de distância [...] uma Força
Vital que é mais potente que as energias no corpo humano. Mas nós nos reunimos
num nível mais elevado de vida [...]. Não precisamos de nome. Vivemos num mundo
paralelo ao seu, ao lado do seu [...]. Os muros se romperam. Dois homens
surgirão do passado [...] o grande urso [...] o mundo encontrará a paz”.
As pessoas dão atenção a essas maravilhas pueris, principalmente
porque elas prometem algo parecido com a religião dos velhos tempos, mas
sobretudo a vida depois da morte, até a vida eterna.
O versátil cientista britânico J.B.S. Haldane, que foi, entre
muitas outras coisas, um dos fundadores da genética populacional, propôs certa
vez uma perspectiva muito diferente para algo semelhante à vida eterna. Haldane
imaginava um futuro distante em que as estrelas se obscureceram e o espaço foi
preenchido em sua maior parte por um gás frio e fino. Ainda assim, se
esperarmos bastante tempo, ocorrerão flutuações estatísticas na densidade desse
gás. Ao longo de imensos períodos, as flutuações serão o suficiente para
reconstituir um Universo parecido com o nosso. Se o Universo é infinitamente
antigo, haverá um número infinito dessas reconstituições, apontava Haldane.
Assim, num Universo infinitamente antigo com um número infinito
de nascimentos de galáxias, estrelas, planetas e vida, deve reaparecer uma
Terra idêntica em que você e todos os seus seres queridos voltarão a se reunir.
Serei capaz de rever meus pais e apresentar-lhes os netos que eles não
conheceram. E tudo isso não acontecerá apenas uma vez, mas um número infinito
de vezes.
Entretanto, de certo modo isso não oferece os consolos da
religião. Se nenhum de nós vai lembrar o que aconteceu desta vez, a época que o leitor e eu estamos
partilhando, as satisfações da ressurreição do corpo, pelo menos aos meus
ouvidos, soam ocas.
Mas nessa reflexão subestimei o que significa infinidade. Na
imagem de Haldane, haverá universos, na verdade um número infinito de
universos, em que nossas mentes recordarão perfeitamente todas as vidas
anteriores. A satisfação está à mão — moderada, no entanto, pela ideia de todos
esses outros universos que também passarão a existir (novamente, não uma vez,
mas um número infinito de vezes) com tragédias e horrores que superam em muito
qualquer coisa que já experimentei desta vez.
Entretanto, o Consolo de Haldane depende do tipo de universo em
que vivemos, e talvez de arcanos, como, por exemplo, saber se há bastante
matéria para finalmente reverter à expansão do universo, e o caráter das
flutuações no vácuo. Ao que parece, aqueles que sentem um profundo desejo de
vida após a morte poderiam se dedicar à cosmologia, à gravidade quântica, à
física das partículas elementares e à aritmética trans-finita.
Clemente de Alexandria, um dos padres da Igreja primitiva, em
suas Exortações aos gregos (escritas em torno do ano 190),
rejeitava as crenças pagãs em termos que pareceriam hoje em dia um pouco
irônicos:
“Estamos realmente longe de permitir que os homens adultos deem
ouvidos a essas histórias. Mesmo aos nossos filhos, quando eles berram de
cortar o coração, como se diz, não temos o hábito de contar histórias fabulosas
para acalmá-los”.
Em nossa época, temos padrões menos severos. Contamos às
crianças histórias sobre Papai Noel, o coelhinho da Páscoa e a fada do dente
por razões que achamos emocionalmente sadias, mas depois, antes de crescerem,
nós os desiludimos sobre esses mitos. Por que nos desdizemos? Porque o seu
bem-estar como adultos depende de eles conhecerem o mundo tal como é. Nós nos
preocupamos, e com razão, com os adultos que ainda acreditam em Papai Noel.
Sobre as religiões doutrinárias, escreveu o filósofo David Hume
que
“os homens não ousam confessar, nem mesmo a seus corações, as
dúvidas que têm a respeito desses assuntos. Eles valorizam a fé implícita; e disfarçam
para si mesmos a sua real descrença, por meio das afirmações mais convictas e
do fanatismo mais positivo”.
Essa descrença tem consequências morais profundas, como escreveu
o revolucionário americano Thomas Paine em The age of reason:
“A descrença não consiste em acreditar, nem em desacreditar;
consiste em professar que se crê naquilo que não se crê. É impossível calcular
o dano moral, se é que posso chamá-lo assim, que a mentira mental tem causado
na sociedade. Quando o homem corrompeu e prostituiu de tal modo a castidade de
sua mente, a ponto de empenhar a sua crença profissional em coisas que não
acredita, ele está preparado para a execução de qualquer outro crime”.
A formulação de T.H. Huxley foi:
“O fundamento da moralidade é [...] renunciar a fingir que se
acredita naquilo que não comporta evidências, e a repetir proposições
ininteligíveis sobre coisas que estão além das possibilidades do conhecimento”.
Clement, Hume, Paine e Huxley estavam todos falando de religião.
Mas grande parte do que escreveram tem aplicações mais gerais — por exemplo,
para as importunidades disseminadas no pano de fundo de nossa civilização
comercial: há um tipo de comercial de aspirina em que atores fingindo ser
médicos revelam que o produto do concorrente tem apenas determinada fração do
ingrediente analgésico que os médicos mais recomendam — eles não dizem qual é o
misterioso ingrediente. Enquanto o seu produto tem uma quantidade drasticamente
maior (1,2 a duas vezes mais por comprimido). Por isso, comprem esse produto. Mas
por que não tomar dois comprimidos do concorrente? Ou considere-se o caso do
analgésico que funciona melhor do que o produto de “potência regular” do
concorrente. Por que não tomar o produto de “potência extra” do outro
fabricante? E eles certamente não falam nada sobre as mais de mil mortes por
ano causadas pelo uso da aspirina nos Estados Unidos ou os aparentes 5 mil
casos anuais de disfunção renal provocados pelo uso de acetaminofeno, de que a
marca mais vendida é o Tylenol. (Isso, contudo, talvez represente um caso de
correlação sem causalidade.) Ou quem se importa em saber quais os cereais que
têm mais vitamina, quando podemos tomar uma pílula de vitamina no café da
manhã? Da mesma forma, que importa saber que um antiácido contém cálcio, se o
cálcio serve para a nutrição e é irrelevante para a gastrite? A cultura
comercial está cheia de informações errôneas e subterfúgios semelhantes à custa
do consumidor. Não se devem fazer perguntas. Não pensem. Comprem.
As explicações pagas de produtos, especialmente se feitas por
verdadeiros ou pretensos especialistas, constituem uma saraivada constante de
embustes. Revelam menosprezo pela inteligência dos clientes. Criam uma
corrupção insidiosa das atitudes populares a respeito da objetividade
científica. Hoje, existem até comerciais em que cientistas reais, alguns de
considerável distinção, atuam como garotos-propaganda para as empresas. Eles
nos ensinam que também os cientistas mentem por dinheiro. Como alertou Tom
Paine, o fato de nos acostumarmos com mentiras cria o fundamento para muitos
outros males.
Enquanto escrevo, tenho diante de mim o programa da Whole
Life Expo, a exposição anual da Nova Era realizada em San
Francisco. É comumente visitada por dezenas de milhares de pessoas. Ali
especialistas muito questionáveis fazem propaganda de produtos muito
questionáveis. Eis algumas das apresentações: “Como proteínas presas no sangue
produzem dor e sofrimento”. “Cristais, talismãs ou pedras?” (Tenho a minha
opinião.) Prossegue: “Assim como um cristal focaliza as ondas sonoras e
luminosas para o rádio e a televisão” — o que é um erro insípido de quem não
compreende como o rádio e a televisão funcionam —, “ele pode amplificar as
vibrações espirituais para o ser humano afinado”. Ou mais esta: “O retorno da
deusa, um ritual de apresentação”. Outra: “Sincronismo, a experiência do
reconhecimento”. Essa é fornecida pelo “irmão Charles”. Ou, na página seguinte:
“Você, Saint-Germain e a cura pela chama violeta”. E assim continua, com
milhares de anúncios sobre as “oportunidades” — percorrendo a gama estreita que
vai do dúbio ao espúrio — que se acham à disposição na Whole Life Expo.
Algumas vítimas de câncer, perturbadas, fazem peregrinações às
Filipinas, onde “cirurgiões mediúnicos”, depois de esconder na palma da mão
pedaços de fígado de galinha ou coração de bode, fingem tocar nas entranhas do
paciente e retirar o tecido doente, que é então triunfantemente exibido. Certos
líderes de democracias ocidentais consultam regularmente astrólogos e místicos
antes de tomar decisões de Estado. Sob a pressão pública por resultados, a
polícia, às voltas com um assassinato não solucionado ou um corpo desaparecido,
consulta “especialistas” de ESP (percepção extra-sensorial) (que nunca
adivinham nada além do esperado pelo senso comum, mas a polícia, dizem os ESPs,
continua a chamá-los). Anuncia-se a previsão de uma divergência com nações
adversárias, e a CIA, estimulada pelo Congresso, gasta dinheiro dos impostos
para descobrir se podemos localizar submarinos nas profundezas do oceano
concentrando o pensamento neles. Um “médium” — usando pêndulos sobre mapas e
varinhas rabdomânticas em aviões — finge descobrir novos depósitos minerais;
uma companhia mineira australiana lhe adianta elevada soma de dólares,
irrecuperável em caso de fracasso, garantindo-lhe uma participação na
exploração do minério em caso de sucesso. Nada é descoberto. Algumas estátuas
de Jesus ou murais de Maria ficam manchados de umidade, e milhares de pessoas
bondosas se convencem de que testemunharam um milagre.
Todos esses são casos de mentiras provadas ou presumíveis.
Acontece um logro, ora de forma inocente, mas com a colaboração dos envolvidos,
ora com premeditação cínica. Em geral, a vítima se vê presa de forte emoção —
admiração, medo, ganância, dor. A aceitação crédula da mentira talvez nos custe
dinheiro; é o que P.T. Barnum apontou, ao afirmar: “Nasce um otário a cada minuto”.
Mas pode ser muito mais perigoso que isso, e quando os governos e as sociedades
perdem a capacidade de pensar criticamente os resultados podem ser
catastróficos — por mais que deploremos aqueles que engoliram a mentira.
Na ciência, podemos começar com resultados experimentais, dados,
observações, medições, “fatos”. Inventamos, se possível, um rico conjunto de
explicações plausíveis e sistematicamente confrontamos cada explicação com os
fatos. Ao longo de seu treinamento, os cientistas são equipados com um kit de detecção de mentiras. Este é
ativado sempre que novas ideias são apresentadas para consideração. Se a nova
ideia sobrevive ao exame das ferramentas do kit, nós lhe
concedemos aceitação calorosa, ainda que experimental. Se possuímos essa
tendência, se não desejamos engolir mentiras mesmo quando são confortadoras, há
precauções que podem ser tomadas; existe um método testado pelo consumidor,
experimentado e verdadeiro.
O que existe no kit ? Ferramentas para o pensamento
cético.
O pensamento cético se resume no meio de construir e compreender
um argumento racional e — o que é especialmente importante — de reconhecer um
argumento falacioso ou fraudulento. A questão não é se gostamos da conclusão que emerge de uma cadeia
de raciocínio, mas se a conclusão deriva da premissa ou do ponto de partida e
se essa premissa é verdadeira.
Eis algumas das ferramentas:
·
Sempre que possível, deve haver confirmação independente dos
“fatos”.
·
Devemos estimular um debate substantivo sobre as evidências, do
qual participarão notórios partidários de todos os pontos de vista.
·
Os argumentos de autoridade têm pouca importância — as
“autoridades” cometeram erros no passado. Voltarão a cometê-los no futuro. Uma
forma melhor de expressar essa ideia é talvez dizer que na ciência não existem
autoridades; quando muito, há especialistas.
·
Devemos considerar mais de uma hipótese. Se alguma coisa deve
ser explicada, é preciso pensar em todas as maneiras diferentes pelas quais poderia ser explicada. Depois devemos pensar
nos testes que poderiam servir para invalidar sistematicamente cada uma das
alternativas. O que sobreviver, a hipótese que resistir a todas as refutações
nessa seleção darwiniana entre as “múltiplas hipóteses eficazes”, tem uma
chance muito melhor de ser a resposta correta do que se tivéssemos simplesmente
adotado a primeira ideia que prendeu nossa imaginação *1.
·
Devemos tentar não ficar demasiado ligados a uma hipótese, só
por ser a nossa. É apenas uma estação intermediária na busca do conhecimento.
Devemos nos perguntar por que a ideia nos agrada. Devemos compará-la
imparcialmente com as alternativas. Devemos verificar se é possível encontrar
razões para rejeitá-la. Se não, outros o farão.
·
Devemos quantificar. Se o que estiver sendo explicado é passível
de medição, de ser relacionado a alguma quantidade numérica, seremos muito mais
capazes de discriminar entre as hipóteses concorrentes. O que é vago e
qualitativo é suscetível de muitas explicações. Há certamente verdades a serem
buscadas nas muitas questões qualitativas que somos obrigados a enfrentar, mas
encontrá-las é mais desafiador.
·
Se há uma cadeia de argumentos, todos os elos na cadeia devem funcionar
(inclusive a premissa) — e não apenas a maioria deles.
·
A Navalha de Occam. Essa maneira prática e conveniente de
proceder nos incita a escolher a mais simples dentre duas hipóteses que
explicam os dados com igual eficiência.
·
Devemos sempre perguntar se a hipótese pode ser, pelo menos em
princípio, falseada. As proposições que não podem ser testadas ou falseadas não
valem grande coisa. Considere-se a ideia grandiosa de que o nosso Universo e
tudo o que nele existe é apenas uma partícula elementar — um elétron, por
exemplo — num Cosmos muito maior. Mas, se nunca obtemos informações de fora de
nosso Universo, essa ideia não se torna impossível de ser refutada? Devemos
poder verificar as afirmativas. Os céticos inveterados devem ter a oportunidade
de seguir o nosso raciocínio, copiar os nossos experimentos e ver se chegam ao
mesmo resultado.
A confiança em experimentos cuidadosamente planejados e
controlados é de suma importância, como tentei enfatizar antes. Não
aprenderemos com a simples contemplação. É tentador ficar satisfeitos com a
primeira explicação possível que passa pelas nossas cabeças. Uma é muito melhor
que nenhuma. Mas o que acontece se podemos inventar várias? Como decidir entre
elas? Não decidimos. Deixamos que a experimentação faça as escolhas para nós.
Francis Bacon indicou a razão clássica: “A argumentação não é suficiente para a
descoberta de novos trabalhos, pois a sutileza da natureza é muitas vezes maior
do que a sutileza dos argumentos”.
Os experimentos de controle são essenciais. Por exemplo, se
alegam que um novo remédio cura uma doença em 20% dos casos, temos de nos
assegurar se uma população de controle, ao tomar um placebo pensando que ingere
a nova droga, também não experimenta cura espontânea da doença em 20% das
vezes.
As variáveis devem ser separadas. Vamos supor que nos sentimos
mareados, e nos dão uma pulseira que pressiona os pontos indicados pela
acupuntura e cinquenta miligramas de meclizina. Descobrimos que o mal-estar
desaparece. O que causou o alívio — a pulseira ou a pílula? Só ficaremos
sabendo se tomarmos uma sem usar a outra, na próxima vez em que ficarmos
mareados. Agora vamos imaginar que não somos tão dedicados à ciência a ponto de
querer ficar mareados. Nesse caso, não separamos as variáveis. Tomamos os dois
remédios de novo. Conseguimos o resultado prático desejado; aprofundar o
conhecimento, poderíamos dizer, não vale o desconforto de atingi-lo.
Frequentemente o experimento deve ser realizado pelo método
“duplo cego”, para que aqueles que aguardam uma certa descoberta não fiquem na
posição potencialmente comprometedora de avaliar os resultados. Ao testar um
novo remédio, por exemplo, queremos que os médicos que determinam os sintomas a
serem mitigados não fiquem sabendo a que pacientes foi ministrada a nova droga.
O conhecimento poderia influenciar a sua decisão, ainda que inconscientemente.
Em vez disso, a lista dos que sentiram alívio dos sintomas pode ser comparada
com a dos que tomaram a nova droga, cada uma determinada independentemente. Só
então podemos estabelecer a correlação existente. Ou, ao comandar uma
identificação policial pelo reconhecimento de fotos ou dos suspeitos
enfileirados, o oficial encarregado não deveria saber quem é o principal
suspeito, para não influenciar a testemunha consciente ou inconscientemente.
Além de nos ensinar o que fazer na hora de avaliar uma
afirmação, qualquer bom kit de detecção de mentiras deve também
nos ensinar o que não fazer. Ele nos ajuda a reconhecer as
falácias mais comuns e mais perigosas da lógica e da retórica. Muitos bons
exemplos podem ser encontrados na religião e na política, porque seus
profissionais são frequentemente obrigados a justificar duas proposições
contraditórias.
Entre essas falácias estão:
·
ad hominem — expressão latina que
significa “ao homem”, quando atacamos o argumentador e não o argumento (por
exemplo: A reverenda dra. Smith é uma
conhecida fundamentalista bíblica, por isso não precisamos levar a sério suas
objeções à evolução);
·
argumento de autoridade (por exemplo: O
presidente Richard Nixon deve ser reeleito porque ele tem um plano secreto para
pôr fim à guerra no Sudeste da Ásia — mas, como era secreto, o eleitorado
não tinha meios de avaliar os méritos do plano; o argumento se reduzia a
confiar em Nixon porque ele era o presidente: um erro, como se veio a saber);
·
argumento das consequências adversas (por exemplo: Deve
existir um Deus que confere castigo e recompensa, porque, se não existisse, a
sociedade seria muito mais desordenada e perigosa talvez até ingovernável *2. Ou: O
réu de um caso de homicídio amplamente divulgado pelos meios de comunicação
deve ser julgado culpado; do contrário, será um estímulo para os outros homens
matarem as suas mulheres);
·
apelo à ignorância — a afirmação de que qualquer coisa que não
provou ser falsa deve ser verdade, e vice-versa (por exemplo: Não
há evidência convincente de que os UFOs não estejam visitando a Terra;
portanto, os UFOs existem — e há vida inteligente em outros lugares no Universo.
Ou: Talvez haja setenta quasilhões de outros mundos, mas não se
conhece nenhum que tenha o progresso moral da Terra, por isso ainda somos o
centro do Universo). Essa impaciência com a ambiguidade pode ser
criticada pela expressão: a ausência de evidência não é evidência da ausência;
·
alegação especial, frequentemente para salvar uma proposição em
profunda dificuldade teórica (por exemplo: Como um Deus misericordioso
pode condenar as gerações futuras a um tormento interminável, só porque, contra
as suas ordens, uma mulher induziu um homem a comer uma maçã? Alegação especial: Você
não compreende a doutrina sutil do livre-arbítrio. Ou: Como
pode haver um Pai, um Filho e um Espírito Santo igualmente divinos na mesma
Pessoa? Alegação
especial: Você não compreende o mistério
da Santíssima Trindade. Ou: Como Deus permitiu que os
seguidores do judaísmo, cristianismo e islamismo — cada um comprometido a seu
modo com medidas heróicas de bondade e compaixão — tenham perpetrado tanta
crueldade durante tanto tempo? Alegação
especial:Mais uma vez você não
compreende o livre-arbítrio. E, de qualquer modo, os movimentos de Deus são
misteriosos);
·
petição de princípio, também chamada de supor a resposta (por
exemplo: Devemos instituir a pena de
morte para desencorajar o crime violento. Mas a taxa de crimes
violentos realmente cai quando é imposta a pena de morte? Ou: A
bolsa de valores caiu ontem por causa de um ajuste técnico e da realização de
lucros por parte dos investidores. Mas há alguma evidência
independente do papel causal do “ajuste” e da realização de lucros? Aprendemos
realmente alguma coisa com essa pretensa explicação?);
·
seleção das observações, também chamada de enumeração das
circunstâncias favoráveis, ou, segundo a descrição do filósofo Francis Bacon,
contar os acertos e esquecer os fracassos *3 (por exemplo: Um
Estado se vangloria do presidente que gerou, mas se cala sobre os seus
assassinos que matam em série);
·
estatística dos números pequenos — falácia aparentada com a
seleção das observações (por exemplo: ” Dizem que uma dentre cada cinco
pessoas é chinesa. Como é possível? Conheço centenas de pessoas, e nenhuma
delas é chinesa. Atenciosamente “.
Ou: Tirei três setes seguidos. Hoje à noite não tenho como perder).
·
compreensão errônea da natureza da estatística (por exemplo: O
presidente Dwight Eisenhower expressando espanto e apreensão ao descobrir que
metade de todos os norte-americanos tem inteligência abaixo da média);
·
incoerência (por exemplo: Prepare-se prudentemente para
enfrentar o pior na luta com um potencial adversário militar, mas ignore
parcimoniosamente projeções científicas sobre perigos ambientais, porque elas
não são “comprovadas”. Ou: Atribua a diminuição da
expectativa de vida na antiga União Soviética aos fracassos do comunismo há
muitos anos, mas nunca atribua a alta taxa de mortalidade infantil nos Estados
Unidos (no momento, a taxa mais alta das principais nações industriais) aos
fracassos do capitalismo. Ou: Considere razoável que o
Universo continue a existir para sempre no futuro, mas julgue absurda a
possibilidade de que ele tenha duração infinita no passado);
·
non sequitur — expressão latina que
significa “não se segue” (por exemplo: A nossa nação prevalecerá,
porque Deus é grande. Mas quase todas as nações querem que isso
seja verdade; a formulação alemã era “Gott mit uns”). Com frequência, os que
caem na falácia non sequitur deixaram simplesmente de reconhecer as
possibilidades alternativas;
·
post hoc, ergo propter hoc — expressão latina que significa “aconteceu após um fato, logo
foi por ele causado” (por exemplo, Jaime Cardinal Sin, arcebispo de Manila: ” Conheço
[...] uma moça de 26 anos que aparenta sessenta porque ela toma a pílula
[anticoncepcional] “.
Ou: Antes de as mulheres terem o direito de votar, não havia armas
nucleares);
·
pergunta sem sentido (por exemplo: O
que acontece quando uma força irresistível encontra um objeto imóvel? Mas se existe uma força irresistível,
não pode haver objetos imóveis, e vice-versa);
·
exclusão do meio-termo, ou dicotomia falsa — considerando apenas
os dois extremos num continuum de possibilidades intermediárias (por
exemplo: Claro, tome o partido dele; meu
marido é perfeito; eu estou sempre errada. Ou: Ame
o seu país ou odeie-o. Ou: Se você não é parte da solução,
é parte do problema);
·
curto prazo versus longo prazo — um subconjunto da
exclusão do meio-termo, mas tão importante que o separei para lhe dar atenção
especial (por exemplo: Não temos dinheiro para
financiar programas que alimentem crianças mal nutridas e eduquem garotos em
idade pré-escolar. Precisamos urgentemente tratar do crime nas ruas.
Ou: Por que explorar o espaço ou fazer pesquisa de ciência básica,
quando temos tantas pessoas sem teto?);
·
declive escorregadio, relacionado à exclusão do meio-termo (por
exemplo: Se permitirmos o aborto nas
primeiras semanas da gravidez, será impossível evitar o assassinato de um bebê
no final da gravidez. Ou, inversamente: Se
o Estado proíbe o aborto até no nono mês, logo estará nos dizendo o que fazer
com os nossos corpos no momento da concepção);
·
confusão de correlação e causa (por exemplo: Um
levantamento mostra que é maior o número de homossexuais entre os que têm curso
superior do que entre os que não o possuem; portanto, a educação torna as
pessoas homossexuais. Ou: Os terremotos andinos estão
correlacionados com as maiores aproximações do planeta Urano; portanto — apesar da ausência de uma correlação
desse tipo com respeito ao planeta Júpiter, mais próximo e mais volumoso — o
planeta Urano é a causa dos terremotos); *4
·
espantalho — caricaturar uma posição para tornar mais fácil o
ataque (por exemplo: Os cientistas supõem que os
seres vivos simplesmente se reuniram por acaso — uma formulação que ignora
propositadamente a ideia darwiniana central, de que a natureza se constrói
guardando o que funciona e jogando fora o que não funciona. Ou isso é também
uma falácia de curto prazo/longo prazo — os ambientalistas se importam
mais com anhingas e corujas pintadas do que com gente);
·
evidência suprimida, ou meia verdade (por exemplo: Uma
“profecia” espantosamente exata e muito citada do atentado contra o presidente
Reagan é apresentada na televisão; mas — detalhe importante — foi
gravada antes ou depois do evento? Ou: Esses abusos do governo pedem
uma revolução, mesmo que não se possa fazer uma omelete sem quebrar alguns ovos.
Sim, mas será uma revolução que causará muito mais mortes do que o regime
anterior? O que sugere a experiência de outras revoluções? Todas as revoluções
contra regimes opressivos são desejáveis e vantajosas para o povo?);
·
palavras equívocas (por exemplo, a separação dos poderes na
Constituição norte-americana especifica que os Estados Unidos não podem travar
guerra sem uma declaração do Congresso. Por outro lado, os presidentes detêm o
controle da política externa e o comando das guerras, que são potencialmente
ferramentas poderosas para que sejam reeleitos. Portanto, os presidentes de
qualquer partido político podem ficar tentados a arrumar disputas, enquanto
desfraldam a bandeira e dão outros nomes às guerras — “ações policiais”,
“incursões armadas”, “ataques de reação protetores”, “pacificação”,
“salvaguarda dos interesses norte-americanos” e uma enorme variedade de
“operações”, como a “Operação da Causa Justa”. Os eufemismos para a guerra são
um dos itens de uma ampla categoria de reinvenções da linguagem para fins
políticos. Talleyrand disse: “Uma arte importante dos políticos é encontrar
novos nomes para instituições que com seus nomes antigos se tornaram odiosas
para o público”).
Conhecer a existência dessas falácias lógicas e retóricas
completa o nosso conjunto de ferramentas. Como todos os instrumentos, o kit de detecção de mentiras pode ser mal
empregado, aplicado fora do contexto, ou até usado como uma alternativa
mecânica para o pensamento. Mas, aplicado judiciosamente, pode fazer toda a
diferença do mundo — ao menos para avaliar os nossos próprios argumentos antes
de os apresentarmos aos outros.
A indústria do tabaco norte-americana fatura cerca de 50 bilhões
de dólares por ano. Há uma correlação estatística entre o fumo e o câncer,
admite a indústria do fumo, mas não existe, dizem, uma relação causal. Uma
falácia lógica está sendo cometida, é o que afirmam. O que significa tudo isso?
Talvez as pessoas com predisposições hereditárias para contrair câncer tenham
predisposições hereditárias para drogas que viciam — assim, poderia haver uma
correlação entre o câncer e o fumo, mas aquele não seria causado por este.
Podem-se inventar conexões desse tipo, cada vez mais forçadas. Essa é
exatamente uma das razões por que a ciência insiste em fazer experimentos de
controle.
Vamos supor que se pintassem as costas de um grande número de
camundongos com alcatrão de cigarro, e que também se observasse à saúde de um
número quase idêntico de camundongos que não foram pintados. Se os primeiros
contraem câncer e os segundos não, pode-se ter bastante certeza de que a
correlação é causal. Trague a fumaça de tabaco, e a chance de contrair câncer
aumenta; não trague, e a taxa permanece no nível básico. O mesmo vale para o
enfisema, a bronquite e as doenças cardiovasculares.
Quando, em 1953, se publicou a primeira obra na literatura
científica mostrando que as substâncias presentes na fumaça do cigarro, quando
espargidas nas costas de roedores, produzem tumores malignos, a reação das seis
maiores companhias de tabaco foi começar uma campanha de relações públicas para
impugnar a pesquisa, patrocinada pela Fundação Sloan Kettering. Uma reação
semelhante à da Du Pont Corporation, quando em 1974 foi publicada a primeira
pesquisa mostrando que seu produto Freon ataca a camada protetora de ozônio. Há
muitos outros exemplos.
É de se pensar que, antes de denunciar descobertas científicas
indesejadas, as principais companhias deveriam empregar os seus consideráveis
recursos para verificar a segurança dos produtos que se propõem fabricar. E, se
perdessem algo, se cientistas independentes sugerissem um perigo, por que as
companhias se oporiam? Prefeririam matar pessoas a perder lucros? Se, nesse
mundo incerto, um erro precisa ser cometido, ele não deveria ter o objetivo de
proteger os clientes e o público? E, por outro lado, o que esses casos revelam
sobre a capacidade de o sistema de livre empresa policiar a si mesmo? Não são
exemplos em que a interferência do governo é claramente a favor do interesse
público?
Um relatório interno da Brown and Williamson Tobacco
Corporation, de 1971, lista como objetivo da companhia “afastar das mentes de
milhões a falsa convicção de que fumar cigarros causa câncer de pulmão e outras
doenças; uma convicção baseada em pressupostos fanáticos, rumores falaciosos,
afirmações sem fundamento e declarações não científicas de oportunistas que
buscam notoriedade”. Eles se queixam do
ataque incrível, sem precedentes e abominável contra o cigarro,
constituindo o maior libelo e a maior difamação já perpetrados contra um produto
na história da livre empresa; um libelo criminoso de tão grandes proporções e
implicações que é de se perguntar como essa cruzada de calúnias pode se
acomodar sob a Constituição pode ser tão desrespeitada e violada [sic].
Essa retórica é apenas um pouco mais inflamada do que a das
declarações que a indústria de tabaco emite de tempos em tempos para consumo
público.
Há muitas marcas de cigarros que anunciam baixo nível de
alcatrão (dez miligramas ou menos por cigarro). Por que isso é uma virtude?
Porque é no alcatrão refratário que os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos
e algumas outras substâncias cancerígenas se concentram. As propagandas que
enfatizam baixos teores de alcatrão não são uma admissão tácita das companhias
de tabaco de que os cigarros realmente causam câncer?
A Healthy Building lnternational é uma organização lucrativa,
que recebe há anos milhões de dólares da indústria do fumo. Ela realiza
pesquisas sobre fumo passivo, e presta declarações para as companhias de
tabaco. Em 1994, três de seus técnicos reclamaram que altos executivos teriam
falsificado dados sobre partículas de cigarro inaláveis no ar. Em todos os
casos, os dados inventados ou “corrigidos” faziam a fumaça de cigarro parecer
mais segura do que as medições dos técnicos haviam indicado. Os departamentos
de pesquisa da companhia ou as firmas do ramo contratadas já descobriram alguma
vez que um produto é mais perigoso do que a empresa de tabaco declarou
publicamente? Em caso positivo, mantiveram o emprego?
O tabaco vicia; segundo muitos critérios, ainda mais do que a
heroína e a cocaína. Havia uma razão para as pessoas “caminharem uma milha por
um Camel”, como diziam os anúncios da década de 40. Já morreram mais pessoas
por causa do fumo do que em toda a Segunda Guerra Mundial. Segundo a
Organização Mundial de Saúde, o fumo mata 3 milhões de pessoas por ano em todo
o mundo. Esse número vai chegar a 10 milhões de mortes por ano em 2020 em parte
devido a uma grande campanha publicitária que pinta o tabagismo como um hábito
avançado e elegante para as jovens mulheres do mundo em desenvolvimento. É em
parte por causa da falta disseminada de conhecimento sobre a detecção de
mentiras, o pensamento crítico e o método científico que a indústria de tabaco
consegue ser o fornecedor bem-sucedido dessa mistura de venenos que viciam. A
credulidade mata.
Notas:
1. Esse é um problema que
afeta os júris. Estudos retrospectivos mostram que alguns jurados tomam a sua
decisão muito cedo — talvez durante a argumentação de abertura; depois guardam
na memória as provas que parecem sustentar suas impressões iniciais e rejeitam
as contrárias. O método das hipóteses eficazes alternativas não está em
funcionamento nas suas cabeças.
2. Uma formulação mais
cínica feita pelo historiador romano Políbio: “Como as massas são inconstantes,
presas de desejos rebeldes, apaixonadas e sem temor pelas consequências, é
preciso incutir-lhes medo para que se mantenham em ordem. Por isso, os antigos
fizeram muito bem ao inventar os deuses e a crença no castigo depois da morte”.
3. Meu exemplo favorito é a
história que se conta sobre o físico italiano Enrico Fermi, recém-chegado às
praias norte-americanas, membro do Projeto Manhattan de armas nucleares, e
tendo de se defrontar com chefes-de-esquadra norte-americanos no meio da
Segunda Guerra Mundial.
— Fulano de tal é um grande general — disseram-lhe.
— Qual é a definição de um grande general? — perguntou Fermi na sua maneira
característica.
— Acho que é um general que ganhou muitas batalhas consecutivas.
— Quantas?
Depois de alguma hesitação, decidiram-se por cinco.
— Quantos dos generais norte-americanos são grandes generais?
Depois de mais alguma hesitação, decidiram-se por uma pequena porcentagem. —
Mas imaginem — replicou Fermi — que não exista isso que vocês chamam de grande
general, que todos os exércitos tenham forças iguais, e que vencer uma batalha
seja uma simples questão de sorte. Nesse caso, a probabilidade de vencer uma
batalha é de uma em duas, ou 1/2; duas batalhas, 1/4; três, 1/8; quatro, 1/16;
e cinco batalhas consecutivas, 1/32 — o que é mais ou menos 3%. Vocês esperam
que uma pequena porcentagem dos generais norte-americanos ganhe cinco batalhas
consecutivas — por uma simples questão de sorte. Agora, algum deles já ganhou
dez batalhas consecutivas… ?
4. Ou: As
crianças que assistem a programas violentos na televisão tendem a ser mais
violentas na vida adulta. Mas a TV causou a violência, ou crianças
violentas preferem assistir a programas violentos? Muito provavelmente, as duas
coisas. Os defensores comerciais da violência na TV argumentam que qualquer um
sabe distinguir entre a televisão e a realidade. Mas os programas infantis das
manhãs de sábado têm hoje em dia uma média de 25 atos de violência por hora. No
mínimo, isso toma as crianças insensíveis à agressão e à crueldade gratuita. E,
se podemos implantar falsas lembranças nos cérebros de adultos impressionáveis,
o que não estamos implantando em nossos filhos, quando os expomos a uns 100 mil
atos de violência antes de terminarem a escola primária?
·
Carl Edward Sagan - foi um cientista,
astrobiólogo, astrônomo, astrofísico, cosmólogo, escritor e divulgador
científico norte-americano (9 de novembro de 1934 / 20 de dezembro de
1996,)
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fonte: O Mundo Assombrado pelos Demônios