'Fobia
financeira' paralisa e aumenta as dívidas
Pavor de lidar com finanças pessoais é capaz de
causar irritação, ansiedade, tontura e mal-estar
O empresário
André Dias, 40, acumula há dez dias uma pilha de notas fiscais na mesa da cozinha da
sua pizzaria, a Pizzatopia, na zona oeste de São
Paulo.
São notas de compra e venda de produtos dos últimos quatro meses. É
preciso tirar fotos dos documentos e enviá-las ao seu contador. Mas ele simplesmente não consegue.
"Fico
nervoso, passo mal, suo frio só de ter de lidar com números, não consigo
consultar extratos, conferir a fatura do cartão, fazer pagamentos.
Se eu
preciso ir ao banco, meu dia acaba. É algo que suga a minha energia",
afirma Dias, que está pronto para procurar ajuda psiquiátrica para o seu problema, a
pedido da mulher, Ana.
Advogada, ela se vê em dupla jornada: quando deixa o
escritório, é obrigada a acompanhar as contas da pizzaria, inaugurada há um
ano.
Dias suspeita
ter "fobia financeira" –expressão criada pelo psicólogo
britânico Brendan Burchell, professor do
Departamento de Sociologia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, para
identificar quem tem repulsa a qualquer tipo de contato com as próprias finanças e
Em 2003,
Burchell publicou um estudo que apontou que cerca de 20% da população do Reino
Unido sofria de fobia financeira –uma síndrome que até o momento não foi
catalogada como transtorno psiquiátrico.
O especialista
havia ficado intrigado com dados de uma empresa de serviços financeiros que
apontavam um comportamento aparentemente irracional de parte dos britânicos ao
lidarem com suas finanças pessoais, que causava altos custos a eles mesmos.
"A maioria
das pessoas tem alguns sintomas de fobia financeira, mas acredito que para 10%
a 20% da população seja um problema realmente significativo", disse
Burchell.
"A fobia financeira não ocorre apenas
com pessoas com dívidas, mas com certeza torna
mais difícil ter que lidar com elas."
De acordo com os
estudos de Burchell, a ideia de ter que encarar suas finanças pessoais faz com
que algumas pessoas, vítimas de fobia financeira, sintam um mal-estar emocional
e físico, o que inclui irritação, ansiedade, tontura, imobilização (ficar "travado")
e ter a impressão de estarem doentes.
Boa parte destes
sintomas esteve presente na vida da microempresária Patcha Pietro Belli, de 38
anos.
Arquiteta de formação, ela decidiu parar de trabalhar na área e se tornar
empreendedora em 2019, fazendo pães artesanais.
"Fiz alguns
cursos para venda pelas redes sociais e minha demanda aumentou muito durante a
pandemia", diz ela, que decidiu contratar no começo do ano passado os
serviços de uma mentora financeira para lidar melhor com o negócio em expansão.
"Já tinha consciência que, para reduzir gastos, precisaria ter minhas
contas bem organizadas."
VOCÊ TEM PAVOR DE LIDAR COM NÚMEROS?
A resposta
positiva a todas as questões pode indicar que sim, segundo o psicólogo
britânico Brendan Burchell
·
Acho muito chato monitorar minhas
contas bancárias ou de cartão de crédito.
·
Prefiro nem pensar no estado das
minhas finanças pessoais
·
Pensar em minhas finanças pessoais
pode me fazer sentir culpado
·
Não faz sentido economizar dinheiro e
ter cuidado, porque você pode perder tudo sem ter culpa por isso
·
Pensar nas minhas finanças pessoais
pode me deixar ansioso.
Mas foi neste
momento que Patcha literalmente "travou". "Eu simplesmente não
consegui preencher as planilhas que a mentora me mandou pedindo informações
sobre o negócio, como compras, custos, vendas", afirma.
Ela se
surpreendeu com o próprio comportamento, porque enquanto atuava como arquiteta
se tornou especialista no editor de planilhas Excel, desenvolvendo fórmulas e
controles internos para várias atividades.
As interrupções
fizeram com que a mentoria, que iria durar entre 3 e 6 meses, se estendesse por
um ano. "A gente marcava reuniões a cada 15 dias e eu passava mal, sentia
cólica, dor de cabeça, até febre. Era um pânico sempre que via o nome dela na
chamada do celular".
Não foi só a
mentoria que ficou travada: Patcha deixou os impostos da empresa acumularem.
"Bateu
muita insegurança quando comecei a ver os números de perto.
Ficava me
questionando o tempo todo: ‘E se o negócio não for viável? E se for preciso
aumentar os preços, meus produtos são tão bons assim?
E se eu não conseguir
vender tudo o que preciso?’", lembra.
A mentora de
Patcha, Danielle Ramos Soares, pediu que ela tivesse paciência consigo mesma e
não se cobrasse tanto.
Desse um passo de cada vez, para pôr fim à
procrastinação, e se dedicasse com afinco ao trabalho, que lhe dava prazer,
para lidar com a ansiedade e a angústia.
"Foram
necessárias muitas sessões de análise e estabelecer uma relação de confiança
com a minha mentora.
Mas superei: hoje consigo olhar minhas finanças de frente
e faço sozinha a contabilidade da empresa. Negociei minhas dívidas e desde o
mês passado estou colocando tudo em ordem."
COM MESTRADO EM CONTROLADORIA, CLÁUDIA FICOU 8
MESES SEM VER EXTRATOS
Já com a
empresária Cláudia Barreto Wortmann, 54, o problema foi muito mais intenso.
Administradora
de empresas, com mestrado em controladoria, ela trabalhou durante 28 anos no
mercado financeiro, até abrir um restaurante em sociedade com alguns amigos, no
final de 2019.
No começo de
2020, no entanto, descobriu que tinha câncer de mama.
Veio a pandemia e ela precisou
fechar as portas do negócio. Quando o movimento retornou, os sócios decidiram
deixar o restaurante, localizado dentro de um clube tradicional em São Paulo.
Algum tempo depois, o clube rescindiu unilateralmente o contrato e deu duas
semanas para ela fechar o estabelecimento. Cláudia teve que entrar na Justiça
para manter as portas abertas.
"Fiquei
completamente sem chão", diz ela, lembrando ainda que enfrentou a morte do
irmão no mesmo período.
"Parei de pagar as contas, só o que estava em
débito automático era quitado. Fiquei 8 meses sem ver extrato, conta corrente
pessoal, cartão, nada.
Não queria sair de casa, estava com um quadro depressivo grave".
Com 26
funcionários, ela passou a atrasar os pagamentos, a empresa foi protestada e
ela entrou para o cadastro de inadimplentes, ficando com o "nome
sujo". "Teve dia que eu quis me matar por causa das dívidas",
lembra. "O psiquiatra dobrou o meu medicamento e a psicóloga me ligava
todo dia".
Aos poucos, ela
se abriu com a família sobre o problema. Entrou em um acordo na Justiça com o
clube e recebeu metade da multa pela rescisão. Mas ainda deve R$ 500 mil.
"Até hoje
não sei como uma pessoa tão racional como eu caiu nessa, eu ainda luto contra
essa fobia de números", diz ela, que continua tomando medicamentos para
ansiedade, mas em menor dosagem, e faz terapia uma vez por semana.
"Hoje
consigo encarar a minha dívida mensal de R$ 30 mil. Voltei a pagar impostos e
prometi a mim mesma encerrar agosto com todas as contas pagas", afirma
Cláudia, que mantém um café na região da avenida Paulista, em São Paulo.
'MOLA ENCOLHIDA' FAZ PARCELAR COMPRA DO MERCADO E
GASTAR EM SHOWS
A devastação que
a pandemia causou nas finanças de muitas famílias pode ter desencadeado essa
aversão a números, segundo Diogo Angioleti, especialista em finanças e
comportamento do sistema de cooperativas de crédito Ailos.
"Quem passa
por experiências muito ruins perde a confiança em si mesmo, assim como o
controle das próprias finanças", afirma Angioleti.
Foi o que
aconteceu com André Dias.
Há cerca de dez anos, ele herdou um negócio familiar,
uma pequena empresa de salgados no litoral paulista. Para aumentar os ganhos,
investiu na industrialização da produção, até então artesanal.
Passou a vender
mais, mas calculou mal o aporte de recursos e, algum tempo depois, a empresa
quebrou.
"Aquilo me
deixou muito frustrado", lembra Dias, formado em Direito. "Sou um
cara que sempre soube administrar o próprio dinheiro, conseguia poupar.
Mas hoje
só de falar em dinheiro minhas mãos ficam geladas."
A economista
Paula Sauer, mestre em administração pela PUC-SP, doutoranda em comportamento
do consumidor pela ESPM, lembra que o tabu de falar de dinheiro na pandemia foi
diluído, uma vez que muitos foram obrigados a mudar o padrão de vida, diante da
perda de emprego e renda.
"Mas a
pandemia também deu origem ao fenômeno da ‘mola encolhida’: depois de passar
tanto tempo sem realizar seus desejos, as pessoas querem uma recompensa",
afirma.
"É o que justifica, por exemplo, parcelar compras de supermercado
no cartão, mas gastar para ver o show do cantor preferido ou o jogo do time do
coração no estádio", diz ela.
"As pessoas
estão extremamente angustiadas."
Jornal FSP