A Folha teve a gentileza de me enviar, faz alguns
meses, seu "Manual da Redação". Já mora na
minha mesa como verdadeiro e excelente pai dos burros. É ótimo e faz pensar.
Aprendi muito e continuo aprendendo. Descobri, entre outras coisas, o que é
"feature", "lide", "hard news" e outros termos próprios ao jornalismo. Embora ainda os
confunda um pouco.
Tem clara organização, tornando fácil achar o que
se procura. Há uma parte muito engraçada no final, poucas páginas suculentas: a
seção intitulada "Errei, mas quem não erramos". Tão boa, com gosto de
quero mais. Desde 1991 o jornal mantém a prática da correção que elucida lapsos
e equívocos de edições anteriores.
Exemplos: "O nome do maestro Eleazar de Carvalho
saiu grafado errado, sem a letra 'v' na edição de ontem". Ou: "A
reportagem [...] informou incorretamente que Val Marchiori é socialista. O
termo correto é socialite". Ainda: "Diferentemente do que foi
publicado [...] o tatu não nasce de um ovo".
Está claro, um manual é um guia, não uma camisa de
força. Quem escreve tem seu estilo pessoal e deve adaptar-se às indicações.
Concordo com quase tudo. Tenho, porém, meus poucos desacordos.
"Manual da Redação" da Folha, na versão
lançada em fevereiro –
O maior está na implicância com o pobre gerúndio. De uns
anos para cá, o gerúndio tem sido condenado. Minha intuição diz que isso
começou com o hábito de algumas pessoas usarem as formas "vou estar
fazendo", "vou estar enviando" e assemelhadas. De fato, elas são
pesadas, mas embora eu não entenda de língua, o gerúndio parece aí bem inocente.
Nessas locuções, o peso deselegante está na sucessão de
três verbos enfileirados. Porém, a forma "eu estive ouvindo rádio enquanto
escrevia" configura-se, creio, como justa e apurada.
Ora, o "Manual" não é lá muito simpático com o
gerúndio. Diz, por exemplo: "Prefira 'O presidente foi flagrado em
conversa com o lobista' a 'O presidente foi flagrado conversando com o
lobista'". Não me convence. Foi flagrado em conversa é estático;
conversando oferece a ideia de ação em andamento, e o princípio de surpresa é,
neste caso, bem mais convincente.
Ao ver ou ouvir o gerúndio sendo atacado, penso sempre
no poema "Cantiga do Viúvo", de Carlos Drummond de Andrade, tão bonito: "Uma
sombra veio vindo,/ veio vindo, me abraçou". O ir vindo, vir vindo, é um
modo muito brasileiro, bem difícil de encontrar equivalente em outra língua.
Quando verti para o francês as "Memórias do
Cárcere", de Graciliano Ramos, era impossível achar a correspondência
exata para o sentimento de progressão contido em frases como "Os
lineamentos dos homens pouco a pouco se iam definindo". Tal situação
multiplicou-se de maneira impressionante ao passar, também para o francês,
"Os Sertões", de Euclides da Cunha.
Euclides é um apaixonado pelo gerúndio e eu tinha a
impressão de que, em cada parágrafo, encontrava pelo menos cinco ou seis deles.
A mesma dificuldade surgia numa oração assim: "Veem-se, porém, depois,
lugares que se vão tornando crescentemente áridos".
Com medo de errar no gerúndio, noto que muita gente
busca evitá-lo, escolhendo a forma lusitana com o infinitivo.
Prefere "estive a falar" a "estive
falando". É uma perda. Proponho que continuemos usando o gerúndio: é
expressivo e bonito. Desde que ele não se enfileire na rabeira de três verbos.
Outra regra do "Manual" adverte contra os
clichês. No que me concerne, tenho muito amor por eles. Na lista de exemplos a
evitar, estão alguns insípidos, sem dúvida, mas outros deliciosos: "a voz
rouca das ruas", "com a cara e a coragem", "de mãos
abanando", "herança maldita" —que parece título de melodrama—,
"silêncio sepulcral" —que evoca romance de terror. Para mim, os
clichês têm sabor entre irônico e cúmplice e podem, sim, colorir o estilo.
Vamos "dar-nos ao luxo" de empregá-los.
Uma regra não mencionada no "Manual", mas que
considero importante e que deveria existir, é a do "eu no fim". Creio
que ela faz parte de minha geração, mais velha, quando aprendíamos a dizer:
"fulano, beltrano, sicrano e eu" —como Sérgio Porto, o formidável Stanislaw Ponte Preta, intitulava um de seus
livros, "Tia Zulmira e Eu"— sem nunca fazer o oposto, ou seja:
"eu, fulano, beltrano e sicrano".
Hoje,
este modo prevalece. Provoca em mim um sentimento de barbárie. A pessoa que o
emprega pode ser um doce, mas sinto como se, junto a esse "eu"
enxerido enfiando-se em primeiro lugar, furando fila, aflorasse um desrespeito.
O mesmo de não ceder lugar aos mais velhos, nem de se levantar quando chega uma
senhora.
Jorge
Coli - professor titular de história da
arte na Unicamp e autor de 'O Corpo da Liberdade' (Cosac Naify).
Fonte:
coluna jornal FSP