É fácil criar uma frase em que a ausência de pontuação subverte
o sentido pretendido pelo escriba, com efeito cômico ou desastroso ou ambos.
Brincando com as vírgulas numa mensagem como "Não te amo não vá
embora", vemos que esses sinais, longe de serem supérfluos, podem fazer a
diferença entre um coração feliz e um coração despedaçado -a diferença mais
relevante do universo.
Então por que será que mensagens eletrônicas ignoram cada vez
mais os sinais de pontuação e que mesmo no (que resta do) mundo analógico eles
vêm sendo pouco e mal empregados como nunca, a julgar por relatos trazidos das
trincheiras conhecidas como salas de aula por apreensivos professores de
português?
Antes de cedermos à conclusão de que o mundo vai acabar não num
gemido, como queria T.S. Eliot, mas numa vírgula faltante, convém lembrar que
as convenções de pontuação que hoje consideramos naturais e eternas não são nem
uma coisa nem outra.
A leitura como a conhecemos, com espaços em branco
individualizando as palavras e um punhado de sinais de trânsito para organizar
o fluxo das ideias nos cruzamentos, é uma construção histórica que só começou a
ganhar corpo no princípio da Idade Média, chegando à maturidade na era de
Gutenberg.
Imersos numa cultura em que a escrita se subordinava
humildemente à oratória e na qual, tudo indica, a leitura silenciosa era artigo
raro, os maiores sábios da antiguidade foram pouco sensíveis à evidência de que
uma fileira
de palavras grudadas era algo que merecia aprimoramento. O dramaturgo grego
Aristófanes foi uma das exceções, adornando seus textos com pontinhos
indicativos de ênfase e pausa, mas essa semente genial levaria séculos para
vingar.
Em sua versão século 21, a mesma primazia do oral sobre o
escrito -ou melhor, a representação gráfica dessa primazia num ambiente em que
a menor fumaça de formalidade é considerada formal demais- está por trás do
rareamento de sinais de pontuação em mensagens eletrônicas.
E como ficam os possíveis mal-entendidos, como aquele do
primeiro parágrafo? Bem, cada um deve se responsabilizar pelos sinais de
pontuação que engole, e todo mundo sabe que o discurso amoroso requer cuidados
especialíssimos. No caso das mensagens interpessoais, porém, o código
compartilhado costuma eliminar sem susto a margem de ambiguidade.
Se no WhatsApp isso se dá de forma mais natural, no Twitter, por
exemplo, a pontuação é frequentemente avacalhada com uma intencionalidade que
tem menos a ver com ignorância ou desleixo do que com a liberdade textual
exercitada por poetas modernos desde as primeiras décadas do século 20.
Sim, estamos falando de um código lúdico e disruptivo em que
determinados sinais de "certo" passam a significar
"errado", e vice-versa. Prenúncio do fim do mundo? Menos, menos,
seria minha resposta de sempre, embora, como o colega Antonio Prata, depois de
Trump eu não duvide de mais nada.
De todo modo, vale observar que uma sutil economia de
compensações parece estar em curso na gramática digital. Os pixels economizados
em cada vírgula ou ponto retornam, gloriosos, nas maiúsculas dos que só sabem
gritar e nos 15 pontos de exclamação em série dos deslumbrados. Deve haver
alguma forma de justiça aí
Sérgio Rodrigues - jornalista e escritor,
publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016
Fonte: coluna jornal FSP