Caso
de João de Deus está entre o estupro de vulnerável e a violação fraudulenta
A partir dos seis anos, ouvi dizer que precisava
desconfiar de judeus e comunistas porque eles comiam crianças cristãs.
De onde vinha essa informação? Dos meus pais, certamente
não: a nossa casa era cheia de amigos judeus e comunistas, e ninguém parecia preocupado
em evitar que eu e meu irmão fôssemos devorados.
Da escola? Não dos professores. Talvez fosse um boato,
uma fake news entre colegas de turma. Vê aquele cara mais velho? É comunista,
cuidado, eles comem crianças.
Não sei bem quando entendi que, de fato, judeus e
comunistas não comiam crianças.
Numa época, li sobre soldados nazistas que, na chegada
dos trens aos campos de extermínio, batiam contra uma parede os bebês que
tivessem chegado vivos até lá. Eles massacravam bebês judeus e acusavam os
judeus de sacrificarem bebês cristãos. Bom exemplo de projeção.
Mais tarde, na adolescência, frequentei por dois anos
uma escola católica. Com os meninos do fundamental, alguns padres tinham as
mãos especialmente bobas.
Isso podia parecer acidental (sempre há uma maçã podre)
até 2002, quando saíram as reportagens do The Boston Globe sobre os estupros de
crianças por padres na diocese de Boston, nos Estados Unidos (e sobre a
covardia da hierarquia, que os acobertava). Veja ou reveja o filme "Spotlight", de Thomas McCarthy.
Será que pedófilos e estupradores tinham uma preferência
específica pelo sacerdócio?
Claro, qualquer um escolhe uma profissão que o coloque
perto do objeto de seu desejo. E, provavelmente, há mais pedófilos entre padres
e professores, por exemplo, do que em outros ramos. Mas isso seria só pela
proximidade física com as crianças permitida por essas profissões?
Naquela época, analisando pacientes pedófilos, descobri
que a fantasia tinha muito pouco a ver com o desejo por carnes frescas: o
essencial do prazer do pedófilo está no fato de fazer com sua vítima algo
inédito para ela, algo que sequer é reconhecido como sexual.
O pedófilo, em suma, tem uma fantasia pedagógica, que
pode se realizar com crianças ou com qualquer um que seja vulnerável. Ele quer
ao mesmo tempo estuprar e instruir sua vítima sobre o que ela está sofrendo.
Por isso, sente-se em casa no ensino e, particularmente, no ensino religioso.
Um exemplo luminoso, em Boston, foi o de um padre que
pedia sexo oral a um menino, explicando que aquela era a forma suprema da santa
comunhão e que o sêmen do padre era mais uma espécie possível do corpo de
Cristo.
Pensei nesse padre ao ler, na semana passada, os relatos
das mulheres que declaram terem sido molestadas
por João de Deus durante sessões de
"medicina espiritual". Algumas, de costas para o médium, eram
exortadas a pegar no membro (flácido, ao que dizem) dele.
Há as que tentavam se convencer de que aquilo devia ser
parte da cura: se não era a mesma coisa que a mão de Deus, talvez o membro
fosse o para-raios capaz de catalisar pensamentos e ondas benéficas divinas.
Apesar do cômico diante da farsa das curas no banheiro,
a figura de João de Deus me indigna e me irrita —penso na milícia que ameaçava vítimas e nos milhões acumulados.
Alguém me escreve para condenar também a credulidade das
mulheres. Ora, muitas recorriam a João como última chance antes de se
resignarem frente a uma doença invalidante ou terminal —delas mesmas ou de
alguém próximo. A presença da morte devia torná-las especialmente vulneráveis à
fraude e ao abuso.
E, no fundo, somos todos vulneráveis, dispostos a
comprar qualquer crença, mesmo fraudulenta, que dê sentido à nossa vida e à
nossa morte.
Os crimes pelos quais João de Deus é investigado estão
na fronteira entre o estupro de vulnerável e a violação sexual fraudulenta.
O estupro de vulnerável se caracteriza quando praticado
contra um menor de 14 anos ou alguém que, por enfermidade ou deficiência, não
tem discernimento para entender o que lhe está sendo imposto.
A violação sexual é fraudulenta quando é realizada
graças a uma fraude —vamos ao banheiro para uma limpeza espiritual, certo? No
caso, uma fraude gigantesca permitiu que João de Deus recebesse os pedidos
desesperados de sujeitos vulneráveis.
Pergunta:
somos todos crédulos porque somos vulneráveis (mortais num mundo sem muito
sentido)? Ou os vendedores de fé e de crenças nos tornam sedentos por sentido e
amor divino e, portanto, vulneráveis às fraudes que eles perpetram?
Contardo
Calligaris - psicanalista, autor de “Hello,
Brasil!” e criador da série PSI (HBO).
Fonte:
coluna jornal FSP