Debate sobre qual regime de dados
deve caracterizar o governo tem de ser público.
Até há pouco, gestores públicos
precisavam se preocupar com questões concretas relacionadas ao patrimônio
público: manutenção, consertos, reformas, ampliações etc. No entanto, o Estado
—como toda e qualquer instituição no planeta— está sendo transformado e
engolido pela economia dos dados.
Decidir
qual é a posição que cada país terá com relação a essa questão guarda relação
direta com a preservação da democracia e a promoção do desenvolvimento.
Há
hoje uma decisão fundamental que cada país precisa tomar: se vai manter a gestão
dos dados com que trabalha no âmbito do setor público ou do setor privado. Essa
não é uma pergunta para a qual há resposta certa. Mas decidir por que lado
seguir tem implicações profundas para cada comunidade política.
Na
Inglaterra e nos Estados Unidos, o caminho que vem sendo
adotado com frequência é a cessão dos dados públicos para entidades privadas.
Um exemplo recente são os dados coletados para permitir a resposta à Covid-19.
O
governo inglês compartilhou uma lista de “datasets” com empresas privadas, cujo
grau de detalhes impressiona. Abrangem o monitoramento de todas as chamadas
telefônicas para serviços de emergência, dados de hospitais, dados de toda a
cadeia de suprimentos de testes de Covid-19, listas de grupos
específicos de pacientes e assim por diante.
Em
vez de lidar com esses dados internamente, o governo inglês decidiu contratar
empresas privadas (como a Palantir) para fazer o processamento.
A
decisão não foi bem recebida. Entidades como a Privacy International enviaram
uma série de objeções a esse arranjo e à parceria entre o sistema público de
saúde e empresas sediadas no Vale do Silício. Uma das entidades questionou: “É
inaceitável que um projeto de larga escala envolvendo dados de pacientes esteja
sendo desenvolvido por empresas do Vale do Silício sem transparência pública”.
A
crítica é que toda essa operação estava sendo feita sem nenhuma transparência
ou debate público prévio. Tanto é que o contrato entre o governo inglês e as
empresas envolvidas só foi publicado na sexta (5), depois de muita pressão e
ações judiciais.
Esse
caso demonstra que o gestor público hoje, além das preocupações com questões
concretas de patrimônio, precisa sempre se fazer duas perguntas em qualquer
contrato público: qual é o regime de acesso dos dados gerados a partir dos
sistemas públicos e qual é o regime de propriedade intelectual (e governança)
dos sistemas que regem esses dados.
Essas
duas perguntas são extremamente relevantes para o Brasil. Na semana passada,
circulou a notícia de que o Serpro, a empresa pública que processa dados do
governo federal, está ampliando o uso e até vendendo serviços de empresas
privadas com seus próprios serviços.
De
novo, não há resposta certa ou errada para essa decisão. Mas, tal como no caso
do governo inglês, medidas como essas não são triviais. Produzem impacto por
décadas e podem ser em grande parte irreversíveis.
Debater
publicamente qual o regime de dados deve caracterizar o governo brasileiro, nos
termos da Constituição Federal, é discussão que precisa ser compartilhada de
forma informada e prévia com os diversos setores da sociedade.
Ronaldo Lemos - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio de Janeiro.
Fonte: coluna jornal FSP