O cérebro tem suas próprias reservas, afinal
Não é só câncer
que come a gordura do cérebro
Olha que coisa bacana ver a ciência mudando nosso
conhecimento.
Quando eu escrevi meu primeiro livro, "O Cérebro Nosso de
Cada Dia", o consenso era que o cérebro não tinha reservas de energia como
o resto do corpo tem, em volumes de gordura aqui e ali.
Pois tem, sim: é a
mielina, a mesma que encapa os nervos e que, em caso de câncer, vira comida de glioblastomas, como eu
escrevi aqui semana passada.
Mielina não é um tipo de célula, mas a parte da
membrana esticada de células chamadas oligodendrócitos que se enrola ao redor
das fibras que conectam neurônios (os axônios) exatamente como papel higiênico
ao redor do tubo de cartolina.
Membranas celulares são feitas de gordura e
proteína, e a mielina não é diferente –mas, com tantas voltas ao redor de um
axônio, a mielina, compacta, parece branca, exatamente como o papel higiênico
fininho e transparente vira um rolo branco e denso.
O resultado é a "substância branca" do
cérebro: as regiões que concentram as conexões entre zonas distantes do
cérebro, como inúmeros rolos de papel higiênico enfileirados.
A função conhecida da mielina é tornar muito mais
rápida a transmissão de sinais ao longo dos axônios encapados por ela, graças
ao espaço minúsculo e protegido entre o axônio e a mielina, que é altamente
condutor (e por isso Mielina era o nome da minha cachorra, branca e mais rápida
do que as crianças jogando bola).
A função até recentemente desconhecida da mielina é
outra, muito mais prosaica e de certa forma um tanto óbvia: ela também serve
como reserva de energia na forma de gordura.
Que os
oligodendrócitos transferem energia para os axônios que eles encapam, isso já
se sabia –mas a transferência acontece na forma de lactato, que é glicose
pré-digerida pelos oligodendrócitos.
Agora, novos métodos revelam que, na falta
de glicose, a gordura da mielina também pode ser absorvida da superfície e
consumida.
Acumular
mielina leva tempo: em nossa espécie, são ao menos 20 anos até o volume do
cérebro estabilizar em seu tamanho adulto, o que durante a adolescência
corresponde ao aumento do volume de mielina.
O acúmulo também casa com o
amadurecimento cognitivo, supostamente conforme a comunicação entre partes
distantes do cérebro se torna mais rápida.
O
bônus, ao que parece, é que, em caso de necessidade, a mielina está lá, no
cérebro adulto –e não apenas como reserva para o cérebro, mas para o corpo
todo.
Aprendi isso com um neurocientista espanhol, Carlos Matute, que também é
maratonista e resolveu estudar a interseção das duas coisas: o que acontece com
a mielina no seu próprio cérebro, e no de outros voluntários, após uma
maratona.
A
resposta impressionante, que ele revelou em um simpósio na Universidade
Autônoma do México duas semanas atrás, é que o volume da mielina diminui
significativamente após correr uma maratona –e leva dois meses até se recompor.
Não
são apenas os macrófagos ensandecidos por um câncer que consomem as reservas de
gordura do cérebro, então: em caso de necessidade, o corpo, estressado, também
tem acesso.
A parte importante é que, no caso de correr uma maratona, não
parece haver consequências negativas para a condução de sinais nem para a
cognição.
A
gordura da mielina serve, de fato, como uma reserva: acumulada porque o cérebro
pôde, não porque ele precisou.
SUZANA
HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade
Vanderbilt (EUA).