Aqui vamos nós, mais um ano, já bem no século 21. Os que
nasceram nos anos 90 já são adultos. Bem-vindos a um mundo confuso. Tensões
políticas no Brasil e no mundo; no financiamento da pesquisa científica; nas escolhas que temos
que fazer daqui para frente, baseadas na nossa relação com o planeta...Tensões
por toda a parte.
Mas tensão não é, necessariamente, algo negativo. Em
todo estado de tensão, existe um potencial de transformação.
Na física, tensão significa energia armazenada, que
chamamos de energia potencial. Por exemplo, quando você comprime uma mola, está
armazenando tensão nela, energia potencial elástica. Basta soltar e lá vai ela,
voltando ao seu estado natural, sem tensão. Ou quando você segura uma pedra no
ar e deixa ela cair; nesse caso, a energia potencial gravitacional depende da
altura da pedra: quanto mais alta, mais energia armazenada. E quando a pedra
bate no chão e para, nada mais ocorre. (Ao menos aparentemente, no movimento da
pedra. Sempre algo ocorre, mesmo que invisível aos olhos.)
Toda tensão armazenada contém potencial transformador.
Tanto na física quanto na vida, nas escolhas que fazemos.
O universo existe sob tensão. Das menores partículas de
matéria às órbitas de planetas e galáxias, ao próprio universo como um todo,
vemos uma dança de transformação, tensão em movimento, uma forma de energia
virando outra.
Sem essa tensão, sem a energia potencial que está
armazenada nela, nada acontece. Sem tensão tudo fica igual, pois não existe
mais o potencial transformador. Tudo o que vemos na natureza, as infinitas
transformações que ocorrem todos os dias em todas as escalas –dentro de você,
ao seu lado, nos céus, no centro da Terra, numa galáxia distante– é produto
dessa grande inquietude cósmica, da tensão criadora que existe em tudo.
O mundo funciona sob tensão; o universo funciona sob
tensão; a sociedade, como não poderia deixar de ser, também funciona sob
tensão. A diferença é que, na natureza, não existem valores morais ligados a
uma tensão ou à transformação que resulta dela. Se uma estrela explode e
destrói os planetas que giram a sua volta, não podemos julgá-la como sendo uma
entidade maléfica. Estrelas explodem naturalmente, como parte de seu ciclo de
vida e morte, algo que vai ocorrer com o Sol em aproximadamente cinco bilhões
de anos.
O Sol não sabe que estamos aqui na Terra, agora. Somos
nós que temos consciência de nossa existência e de nossa fragilidade; somos nós
que desenvolvemos a ciência que explica o ciclo de vida e morte das estrelas, e
que prevê o futuro do nosso sistema solar. Somos nós que atribuímos um valor
moral ao que tensões diversas podem criar.
Todo ato criativo é resultado de uma tensão. Toda
resolução é resultado de uma tensão. Toda escolha é resultado de uma tensão. Ao
passarmos da dimensão cósmica à dimensão humana, os produtos das várias tensões
ganham uma dimensão moral que não existe na dinâmica do mundo natural. Isso nos
une à natureza e, ao mesmo tempo, nos separa dela. Nos une por sermos parte
desses ciclos naturais de transformação, por sermos parte do incessante ir e
vir de energia que existe em tudo. Nos separa, por termos a capacidade de
refletir sobre quem somos e sobre as escolhas que fazemos.
O paradoxo do homem é ser um animal moral.
Entramos em 2018 desnorteados com o ano que passou,
tentando resgatar o impulso criativo que leva a transformações positivas em
nossas vidas e na sociedade como um todo. Talvez, nessas horas de reflexão
sobre o novo, seja bom celebrar o que temos; gratidão, uma palavra que
deveríamos usar mais do que usamos, um sentimento que deveríamos cultivar mais
do que cultivamos.
Chegamos a um ponto da nossa história coletiva em que
podemos, como espécie, afetar deliberadamente o planeta e seu futuro como um todo.
Isso nunca ocorreu antes; espécies que transformaram o
planeta, como as cianobactérias que, através da fotossíntese, encheram a
atmosfera de oxigênio dois bilhões de anos atrás, não o fizeram
conscientemente. Mas nós temos consciência do que está ocorrendo, e a
possibilidade de escolher como agir.
A tensão da escolha está aqui, na nossa frente. O futuro
da sociedade, também.
Espero que a nova geração de adultos, os últimos do
milênio passado, contribuam de forma moral para nosso futuro coletivo. Não será
muito difícil para eles fazer um trabalho melhor do que o da geração que os
antecedeu. Essa é a escolha de cada um.
Marcelo
Gleiser - Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth
College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do
Inesperado'.
Fonte:
coluna jornal FSP