E se o meu neto fosse brasileiro?
Por
ter nascido no Reino Unido, Dylan herdou tíquete na loteria da boa vida, negada
a um imenso número de crianças mundo afora.
Dylan, meu neto, nasceu em abril, em Londres.
É claro que não há garantias absolutas para a
qualidade de vida dele nem de nenhum outro recém-nascido.
Mas certamente é um
bom começo ter nascido em uma família de classe média em um distrito londrino
pacato e seguro, com acesso a bons serviços públicos.
É provável que ele possa crescer e ter uma longa e
próspera vida até o século 22.
Não foi por escolha, e sim pelo acaso, que o
Dylan ganhou um tíquete na loteria da boa vida. Ele a merece, mas não a
conquistou, herdou-a.
É certo também que não será apenas ele o beneficiado.
Também o serão sua família, sua comunidade e o país
onde viverá.
Essa herança é negada a um imenso número de
crianças mundo afora. Certamente para a maioria das nascidas no Brasil de hoje.
E se fosse o Dylan um brasileiro pobre, nascido na
periferia de qualquer grande cidade brasileira?
Talvez sua mãe viesse a criá-lo sozinha —o pai do Dylan poderia estar na prisão por conta da pobreza, do
desespero de não poder criar sua família.
Enquanto isso, os que muito roubam
têm defesa esmerada.
A mãe estaria de luto quando ele nasceu. Teria perdido seu segundo irmão em alguma emboscada da polícia.
Afinal,
em plena pandemia, a polícia matou, em 2020, mais de 6.500 brasileiros, quase
todos homens entre 15 e 29 anos, 80% deles negros. Como o tio do Dylan.
O sustento da casa só seria garantido pela aposentadoria da avó, pois a
mãe do Dylan teria perdido o emprego informal tão logo engravidou. E se a avó
morre?
Com o pai preso e a mãe desempregada, teriam ido
morar com a mesma avó, em uma comunidade sem saneamento básico. A mãe,
mesmo com um smartphone na mão, teria os pés no esgoto.
Dylan teria um ensino público medíocre que, há muito,
ninguém na comunidade espera que venha a melhorar.
Andaria também muito
assustada por conta dos cortes da verba do centro de saúde. Logo quando mais
precisaria de um SUS fortalecido.
A mãe do Dylan estaria muito preocupada porque o
barraco onde vivem fica em uma encosta. E os policiais avisaram que é área de
risco que, a qualquer chuva forte, pode vir morro abaixo.
Da precariedade do ensino, moradia, saneamento e
serviços de saúde às oportunidades de emprego, a falta de políticas públicas
negaria oportunidades ao Dylan brasileiro.
Os descendentes dos antepassados de Dylan,
brutalmente capturados na África há mais de três séculos, ainda esperam alcançar a renda média nacional.
Segundo a Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre 40 países estudados, o Brasil ocupa a
penúltima posição quanto ao número de anos necessários (270) para um jovem
pobre vir a assegurar uma renda equivalente à média nacional.
É a história que
se repete. Três séculos de espera não para ficarem ricos, apenas para atingirem
a renda média!
Mas o medo maior da mãe do Dylan seria a
adolescência do filho. Há uma disputa ferrenha entre os traficantes de drogas e a milícia na área.
Quando entra a polícia, é um Deus nos acuda. O racismo estrutural leva a consequências
sempre piores para alguém como ele.
Se ele conseguisse ultrapassar essa etapa difícil
da vida de um negro pobre, seria o Dylan mais um jovem que nem trabalha nem estuda, como mais de um terço
de jovens em sua vizinhança hoje?
Seria possível para o Dylan cuidar da mãe, cuidar
de si mesmo, sem recursos, qualificações e habilidades que o permitam competir
no mercado de trabalho?
Apesar de tudo e mesmo sabendo que sua expectativa
de vida é menos de dez anos que um Dylan branco e rico, talvez ele conseguisse
envelhecer.
Não ao ter completado 60 ou 70 anos —muito antes, com pressão alta,
diabetes e esperando na longa fila para uma prótese dos joelhos castigados pelo
trabalho duro de muitas décadas.
Parafraseando Gonçalves Dias, já que o último
domingo (18) foi o Dia Internacional da Poesia: os Dylans daqui não gorjeiam
como gorjeiam os de lá.
Alexandre Kalache - médico gerontólogo, presidente do Centro
Internacional de Longevidade no Brasil (ILC-BR).