Apesar de você, amanhã há de ser outro dia
Aprendi com
Clarice que muitas vezes é o próprio 'apesar de' que nos empurra para frente
Comecei 2024 com Clarice Lispector, mergulhada nas suas
crônicas, cartas e entrevistas. Clarice nasceu no dia 10 de dezembro de 1920 e
morreu no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos.
Estou
lendo "Todas as Cartas". Como já conhecia as primeiras cartas da década
de 1940, iniciei minha leitura das 960 páginas pela última carta, de novembro
de 1977, que Clarice escreveu para Lygia Fagundes Telles.
"Lygia, você é tão doce e escreve tão bem.
Fiquei muito contente com o fato de Rachel de Queiroz entrar na ABL.
Se eu
tivesse poder, daria a segunda vaga a Dinah Silveira de Queiroz que conseguiu
para a mulher brasileira um lugar ao sol.
Embora eu não deseje a morte para
ninguém, sugiro que a terceira vaga seja preenchida por Lygia Fagundes Telles.
Estão achando que sugiro mulheres demais? Não, é que a Academia Brasileira de
Letras tem uma grande dívida para com as mulheres.
E se Nélida Piñon estivesse
na Academia, esta sofreria uma modificação revolucionária, pois Nélida tem
coragem para renovar.
Antes de terminar, quero dizer que, apesar do grande
respeito que tenho pela Academia, eu jamais aceitaria entrar nela."
O desejo de Clarice se realizou. A primeira mulher
eleita para a ABL (Academia Brasileira de Letras), em 4 de
novembro de 1977, foi Rachel de Queiroz; Dinah Silveira de Queiroz foi eleita
em 10 de julho de 1980; Lygia Fagundes Telles em 24 de novembro de 1985 e
Nélida Piñon em 27 de julho de 1989, a primeira mulher a assumir a presidência
da ABL, no biênio 1996-1997.
Em dezembro sempre faço um balanço do que aconteceu
de bom e de ruim no ano que passou.
Em 2024, meu balanço de momentos tristes
incluiu a morte de um amigo querido; a doença grave de uma amiga de infância;
minhas próprias doenças que se acumularam com a idade; perrengues no trabalho;
medos, ansiedades, angústias e insônias.
Sem falar das guerras, desastres
ambientais, crises políticas e econômicas etc.
Apesar de ter sido um ano muito difícil, também fiz um
balanço dos bons momentos, começando pela homenagem que recebi no Dia
Internacional da Mulher: ser escolhida como a primeira representante da Mônica
60+, pela Turma da Mônica do Mauricio de Sousa.
Teve mais. No Dia do Idoso, 1º de outubro, concluí meu relatório de
pós-doutorado em psicologia social sobre "Envelhecimento, autonomia e
felicidade", que vou transformar em um novo livro sobre os caminhos para
construir uma "bela velhice".
E
terminei de escrever, com minhas lágrimas de saudade, um livro em homenagem aos
meus amigos nonagenários, especialmente ao meu melhor amigo Guedes, de 98 anos,
que me ensinou a ter coragem.
A ideia do livro nasceu no dia 8 de maio de 2015,
quando, na minha progressão para professora titular da UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro), Roberto DaMatta disse que meu memorial era uma
espécie de "confissões de uma antropóloga".
Talvez seja o livro mais
bonito que já escrevi. Talvez...
Termino
o ano com Clarice: "Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar
de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar.
Apesar de, se deve
morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para
frente.
Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora
da minha própria vida".
Apesar
de, eu quero saúde, amor e coragem para rir mais de mim mesma. É querer muito?
MIRIAN
GOLDENBERG
- antropóloga e professora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela
Velhice"